Os problemas que vários países europeus estão enfrentando decorrem da própria constituição interrompida/inacabada da Europa como um estado-nação. A Europa quis constituir uma moeda sem ter um estado-nação. A moeda é uma criatura do estado, como corretamente definiu George Knapp (1904) e seguiu-o John Maynard Keynes (1936). Isso implica que uma entidade política precisa ter soberania para determinar o que servirá como moeda, isto é, o que afinal será usado para definir o que e o quanto se deve e quem e como poder-se-á ter acesso aos meios de liquidação das dívidas ou meios de acumulação de poder liberatório. Os países europeus abriram mão de sua soberania de definir a moeda em que cobravam impostos para assumir o Euro e constituir o segundo maior mercado do planeta. Contudo, não criaram entidades públicas supranacionais para assumir o papel de soberano que corrigisse as óbvias diferenças regionais de poder econômico e político entre os membros. Isso significou, sobretudo para os países mais fracos política e economicamente, abrir mão de sua soberania para serem governados segundo os interesses e políticas dos países mais fortes da Europa. Ao mesmo tempo, com os acordos restritivos do Tratado de Maastricht os países europeus mais fracos ficaram a mercê dos interesses dos agentes financeiros privados que quisessem financiar os déficits desses países.
Estão exigindo da Irlanda o maior ajuste fiscal de sua história como garantia de solvencia ao sistema financeiro. A Irlanda era considerada um Tigre por ter feito reformas liberais nas últimas décadas. Suas contas externas se tornaram totalmente determinadas pela entrada de capitais, especialmente o financeiro. Como resultado, apesar de ter um comércio superavitário em 2% do PIB, sua conta corrente tornou-se negativa em cerca de 5% do PIB nos últimos dois anos. Ter sido um país aberto ao investimento e ao comércio e ter feito ajustes fiscais recorrentes não garantiram à Irlanda a misericórdia dos bancos especuladores. A reversão dos fluxos de capitais foi imediata. O caos econômico já mostrou sua cara na Irlanda e tenderá a se aprofundar com as medidas anunciadas pelo Ministro da Fazenda, Brian Lenihan. A crise financeira deflagrada em 2008 fez minguar os recursos externos e quebraram as fontes onde os bancos irlandeses bebiam para financiar suas operações. A reversão dos fluxos quebraram a banca. Pacotes de salvamento dos bancos elevaram o déficit para incríveis 32% do PIB em 2010. A dívida pública como percentual do PIB, que entre 1997 e 2007 foi reduzida de 47% para 19%, subiu para 28% em 2008 e para 46% em 2009. A taxa de desemprego em 2008 já havia crescido em 50%, de 4% para 6% da força de trabalho. Entre os jovens, o desemprego chegou a 15%.
Portugal, Hungria e Espanha seguem no mesmo ritmo de ajuste tentando evitar um socorro da EU que implicasse em requerimentos mais drásticos. Em todos os casos, os cortes em despesas públicas anunciados recaem principalmente sobre os pobres e os trabalhadores. Ainda assim, as taxas de desconto das dívidas soberanas de Espanha, Hungria e Portugal mostram-se resistentes à queda ou mesmo tendendo à elevarem-se. As empresas de classificação de risco diminuíram as notas dadas a Portugal e Hungria na mesma semana em que os parlamentos desses países passaram cortes nos gastos públicos e outras medidas recessivas. E os títulos de dívida espanhóis subiram com o anúncio da Moody’s de que colocou a Espanha em observação. Enfim, a debilidade do sistema financeiro dos países europeus abriu uma janela de oportunidade para a especulação. Mesmo os ajustes fiscais draconianos prometidos por países frágeis não conseguem convencer a sana especulativa. Por outro lado, as recorrentes manifestações populares por toda a Europa minam as bases políticas dos governos.
Angela Merkel, a primeira ministra da Alemanha, reafirmou seu compromisso com a União Européia mas jogou nos ombros dos países menores a responsabilidade pelo ajuste. Segundo ela, a solução está no aumento da competitividade dos países por meio dos ajustes já em andamento. Nada poderia ser mais contrário a um apoio efetivo ao Euro e a União Européia. Primeiro, os ajustes realizados até aqui não vão ao cerne do problema que se encontra no sistema financeiro. Os ajustes anunciados até o momento não indicam que o sistema financeiro será ajustado às dimensões das economias locais nem que será cobrado por sua decisiva participação na montagem dessa crise. Segundo, o aumento da competitividade entre os próprios países europeus só pode ser feita às custas de outros países europeus. Terceiro, uma deflação generalizada na Europa torna mais sangrenta e improvável a retomada das rendas nos países em crise. Da mesma forma, a recessão provocada pelas medidas de ajuste resulta em efeitos depressivos sobre a arrecadação e efeitos inflacionários sobre as despesas sociais, tornando-se ainda mais improváveis e suspeitas as metas de ajuste fiscal requeridas. Enfim, a proposta de Merkel é uma receita para a catástrofe.
A Europa vive um momento de definição e o que ela menos precisa agora é da ortodoxia econômica para superar a crise. Superar a crise em bases econômicas sólidas requeriria uma instância supranacional com o interesse de conduzir a Europa para uma unificação de fato. Entre as linhas de ação emergenciais, ao invés de conceder empréstimos sabidamente insuficientes aos países em crise e afundá-los ainda mais em dívidas, o Banco Central Europeu deveria garantir as dívidas soberanas de seus estados membros, reconhecendo a unidade política da Europa como um proto-estado (isto implica a supressão do Artigo 104 do Tratado de Maastricht). Ao reconhecer a dívida de cada país membro como uma dívida Européia, o Banco Central Europeu unificaria os sistemas financeiros sob sua jurisdição e eliminaria a necessidade de financiamento privado (mais caro e volátil) dos países-membro em momentos de crise. Ademais, o Banco Central Europeu deveria direcionar sua sana de austeridade aos bancos e adotar medidas punitivas aos executivos que levaram o sistema financeiro Europeu à bancarrota. Poderia começar dando exemplo agora que, a despeito da profundidade da crise, altos executivos dos bancos querem manter seus elevados rendimentos e bônus. Mais importante de todas as medidas de austeridade seria o Banco Central Europeu coordenar ações conjuntas de controle de capitais com os demais bancos centrais do mundo. Taxas de juros e taxas de cambio seriam muito mais facilmente estabilizadas com o controle dos capitais.
Do ponto de vista fiscal, o já estabelecido Tesouro Europeu ao invés de supervisionar a implantação do ajuste recessivo, como impôs a Alemanha a seus vizinhos em crise, deveria garantir a demanda européia até o nível de pleno emprego de forma a gerar possibilidades de ajuste coordenado das contas dos estados membros ao mesmo tempo investindo naqueles setores que elevem os retornos sociais (infraestutura, meio ambiente, seguridade social etc). Em uma palavra, ao invés dos cortes de investimentos públicos e de salários, a solução está do outro lado da cerca, isto é, adoção de uma política de criação de empregos e ampliação de serviços públicos.
A corrida para o fundo promovida pela Alemanha e França levarão à dissolução da União Européia e do Euro como os conhecemos e favorecerão o dólar e os bancos globais dos EUA. O reconhecimento de que a União Européia é um projeto de civilização com a criação de um Estado-nação Europeu significa necessariamente ampliar o poder de todos os países membros e adotar uma postura mais cooperativa entre os países membros. Da última vez que os países europeus mais fortes se uniram para impor ajustes competitivos insustentáveis de membros mais fracos, vários países europeus, mais notadamente a Alemanha, experimentaram a hiperinflação e o caos econômico.