Nos concentraremos na ideologia do déficit fiscal zero. O déficit fiscal zero se tornou, para a ideologia livre mercadista, panaceia para todos e quaisquer males da economia. Se há inflação no Brasil é porque o gasto do governo superaquece a economia. Se a Grécia passa por uma crise financeira sem precedentes na mitologia Grega, é porque os mercados desconfiam do débito público. Se o país precisa crescer, o déficit fiscal precisa ser reduzido. O contracionismo fiscal leva à expansão econômica! Enfim, déficit fiscal maior que zero se tornou um mal em sí, um sinal de que a economia vai mal. O déficit fiscal é sinal de má administração pública. É sinal de insustentabilidade da dívida pública. É sinal de corrupção de agentes públicos. O déficit fiscal é ruim, não importa o que aconteça na economia.
Não compartilho da ideologia livre mercadista. Considero socialmente prejudicial, em particular, sua cruzada santa contra o déficit fiscal. Adota-se aqui a visão de que a situação fiscal é um resultado amplamente involuntário das condições econômicas gerais. O déficit ou o superávit não é deplorável ou louvável a priori. Gastos e tributações públicas devem ser avaliados independentemente de se há ou não déficits. O que deve importar, em meu julgamento, é o benefício social a que está servindo o gasto e a tributação pública. Caso não estejam servindo a nenhum interesse público legítimo então que se cesse o gasto ou a tributação. Do contrário, a condenação dos déficits públicos não passa de ideologia.
Para explicar essa posição é preciso fazer uma incursão na contabilidade macroeconômica. É útil para a apresentação considerar uma economia sendo formada por três unidades de contabilidade econômica: o setor governo; o setor privado (empresas e famílias) e o setor externo. O balanço de gastos-receitas de cada desses setores resulta em seus superávits ou déficits e no agregado eles se compensam. Num primeiro momento, nos concetraremos apenas no balanço doméstico. Suporemos o setor externo como nulo.
Para quem está acustumado com a algebra macroeconômica deriva a contabilidade macroeconômica da conhecida identidade renda=gastos. Ou:
Y = C + I + G (1)
onde
Y é a renda nacional;
C o consumo;
I o investimento;
G é o gasto do governo.
A renda nacional bruta (Y) é uma das principais fontes usadas pelas famílias para gastarem em bens de consumo e para pagar tributos (T). O que elas não despenderem dessa forma, formará um estoque de riqueza financeira, chamada poupança (S). Assim,
Y = C + T + S (2)
Do que, podemos afirmar que a equação (1) iguala-se a equação (2):
C + I + G = C + T + S (3)
Depois de cancelar C de ambos os lados das equações e manipularmos os demais termos, chegamos ao seguinte resultado:
(S – I) = (G – T) (4)
Em palavras, a equação (4) significa que o superávit do setor privado é igual ao déficit do setor público e que a soma de ambos iguala a zero:
Balanço Privado (S – I) + Balanço Governo (T – G) = 0
De início, essa identidade macroeconômica mostra que não é possível termos superávits (nem déficits) nos dois setores simultaneamente. Suponha que o governo está em déficit (isto é suas receitas são menores do que suas despesas). Para que a contabilidade se mantenha é preciso que o setor privado esteja superavitário a ponto de compensar o déficit público. Em outras palavras, o setor privado (famílias e firmas) estará acumulando riqueza financeira, tanto mais quanto maior for o déficit público.
Agora, suponha que a história do superávit fiscal prevaleça. Novamente, a compensação deverá vir do balanço privado. O setor privado terá de entrar em déficit. Assim, quanto maior o superávit do governo tanto maior deverá ser o déficit do setor privado.
A contabilidade macroeconômica acima foi tratada em termos de fluxos de receitas e despesas. Mas há também uma correspondência disso em termos de estoques, ativos e passivos financeiros. Isto é, a contabilidade macroeconômica implica que o acumulo de dívida de uns agentes será compensada pelo acumulo de ativos de outros agentes. Assim, depósitos em contas correntes das famílias são compensadas por dívidas dos bancos. Títulos públicos e privados são ativos das famílias. Famílias também assumem dívidas, como créditos para consumo ou dívidas de financimentos imobiliários. A diferença entre dívidas e ativos de uma unidade econômica formará sua riqeza financeira líquida, positiva ou negativa.
Dessa forma, se tomarmos todo o setor privado (empresas e firmas) suas dívidas e ativos deverão se compensar totalmente. Em outras palavras, em termos líquidos o setor privado como um todo não pode gerar riqueza financeira líquida. Sem dúvida, o ativo real que a dívida emitida serviu para financiar a compra constituirá riqueza real da unidade compradora. Se, por exemplo, um crédito é emitido para uma família comprar uma casa, em termos financeiros o crédito do banco é compensado pelo débito assumido pela famíla, de forma que em termos líquidos o setor privado não criou riqueza financeira. Mas ainda assim a família possuirá um ativo real líquido, a casa.
Para o setor privado acumular riqueza financeira líquida é preciso que este setor acumule dívidas emitidas por outro setor. Seguindo nossa divisão simplificada entre setor publico e setor privado, o setor privado acumulará riqueza líquida na forma de moedas e notas emitidas pelo governo e títulos de dívida pública. Como vimos, quando o setor público está em deficit o setor privado está em superávit. O superávit privado, receitas maiores do que suas despesas, significarão aumento do estoque de riqueza financeira privada. Esta última, como vimos, se acumulará na forma ou de moedas e notas ou na forma de títulos de dívida pública. Similarmente, isso significa que o governo aumenta sua dívida. Do contrário, isto é, caso em que o governo está em superávit, sua dívida diminui. O setor privado, por consequência, entra em déficit e reduz sua riqueza financeira líquida.
Já deve estar claro que, considerando razões estritamente financeiras, o déficit público não representa perdas para a riqueza financeira privada. Antes, pelo contrário, o déficit e a dívida públicos aumentam a renda e a riqueza financeira líquida privada. Quando o governo entra em superávit, inevitavelmente, o setor privado entra em déficit. Poderá financiar o déficit vendendo riqueza líquida acumulada dos períodos em que o governo estava em déficit ou poderá aumentar seu endividamento. Seja como for, a riqueza privada diminui quando o setor público entra em superávit.
A contabilidade macroeconomica acima está incompleta, uma vez que as relações foram apresentadas sem se levar em conta as transações da economia doméstica com o resto do mundo. Já há algum tempo as economias estão bem mais integradas em suas transações para que um modelo analítico fechado, isto é que não leve em conta essas transações, nos dê qualquer informação relevante. As transações com o resto do mundo (chamado de balanço das transações correntes) envolvem pagamentos e recebimentos por compras (importações) e vendas (exportações) de produtos, e de pagamentos e recebimentos de rendas (juros, lucros, salários, dividendos etc) realizados entre agentes domésticos e estrangeiros. Observe que o setor “resto do mundo” é formado pelas famílias, firmas e governos externos que transacionam com os setores domésticos (setor privado e setor público vistos acima). Isto implica em que um superavit do resto do mundo representa um déficit para os setores domésticos e vice-versa. Quando o setor doméstico está em superávit na conta de transações correntes com o resto do mundo, o setor doméstico acumula ativos financeiros emitidos por membros do setoresto do mundo. Na contabilidade entre os setores doméstico e resto do mundo aparece, também, uma conta de capital. Esta conta de capital representa os acumulos de ativos financeiros do setor superavitário. Logo, ela se apresenta com o sinal inverso da conta de transações correntes.
Ao adicionarmos o balanço do setor externo aos demais balanços, nada mudará em termos da necessidade de os três balanços se compensarem mutuamente. Assim, fazendo X representar os fluxos pagos pelo setor externo ao setor doméstico enquanto M representa os fluxos de pagamentos ao resto do mundo, temos:
Balanço Privado (S – I) = Balanço Governo (G – T) + Balanço Externo (X – M)
A contabilidade macroeconômica acima pode ser útil na análise do que ocorre com as economias reais e, por isso, um antidoto à ideologia neoliberal que ataca como irrresponsável, corrupto ou ineficiente qualquer gasto do governo. Quando a conta das transações correntes da economia doméstica encontra-se em deficit (X < M) e o setor público em ponto neutro (G = T), a contabilidade macroeconômica indica que o setor privado necessariamente terá de estar em déficit (S < I) de mesma monta do deficit na conta de transações correntes. Isso implica em que a dívida do setor privado doméstico aumenta com agentes externos. Reflexamente, o resto do mundo acumula ativos do setor doméstico dficitário. Caso as contas de transações correntes apresentem superávit (X > M) e o balanço do setor público seja nulo (G = T), então o setor privado deverá estar superavitário (S > I) para compensar o déficit do resto do mundo (superávit das contas correntes do balanço de pagamentos doméstico). Neste caso é o setor privado doméstico que acumula ativos financeiros do resto do mundo. Claro, um déficit nas transações correntes (X < M) popderá ser totalmente compensado por um déficit do setor público (G > T) de forma a que o setor privado não mude seu balanço (S = I). Da mesma forma, um superávit das transações corrrentes pode ser compensado por um superávit fiscal (G < T) de forma que o setor privado doméstico não consiga acumular nenhuma riqueza financeira.
Enfim, a contabilidade macroeconomica mostra que: a) pelo menos uma conta entre os três setores deverá estar em deficit de forma que as demais possam estar em superávit; b) que o setor privado não pode gerar riqueza financeira líquida para si mesmo; c) que o déficit do setor público permite ao setor privado acumular riqueza financeira líquida e compensa perdas de riqueza financeira privada quando há déficit em transações correntes. Assim, ao contrário do que faz crer a ideologia neoliberal, do ponto de vista do balanço financeiro do setor privado, este se torna positivo quando o setor público apresentar déficit fiscal. Em épocas em que o endividamento das famílias e das firmas preocupa gregos, troianos, americanos, italianos e brasileiros o déficit público entra como parte da solução e não do problema.